A princípio, a história parece ter uma veia senão previsível, pelo menos clássica, em que alguém que não se adapta bem à anterior localidade onde vivia necessita agora de passar tempo na mesma. Alguns esboços de confrontos, contudo, diluem-se naquela que se torna numa literal dança de crescente força hipnotizante que captura a atenção, e os impulsos e sentimentos, de todos.
Bolero é, certamente, a peça mais conhecida de Maurice Ravel, porém só raramente é apresentada com a coreografia que Bronislava Nijinska criou para a acompanhar à data da estreia. O bailado de Nijinska responde à estrutura repetitiva da composição de Ravel segundo uma lógica de capilaridade, com uma frase de movimentos que vai, sucessivamente, dominando o corpo de baile (inicialmente estático, finalmente feérico). O realizador Nans Laborde-Jourdàa parte destas duas obras e produz um diálogo ficcional onde se regressa aos locais de infância com nostalgia e temor. Só que, na sua versão, o ponto de partida é o corpo do bailarino François Chaignaud que reinterpreta Bolero como se se tratasse do conto “O Flautista de Hamelin” (onde a música é substituída pelos gestos dos pés e das mãos, e onde a dança não atrai os inocentes, mas instala a potência revolucionária do desejo). A invisibilidade torna-se, na cabine de uma casa de banho pública, numa forma de sublimação do recalque e de celebração contagiante dos poderes da sedução. (Ricardo Vieira Lisboa)