23 MAIO — 02 JUNHO 2024

23 MAIO — 02 JUNHO 2024

Silvestre: liberdade estética e intransigência política

Estamos a quatro semanas da abertura da vigésima edição do IndieLisboa, altura perfeita para anunciar o alinhamento de uma das secções mais esperadas – Silvestre. Tal como noutros segmentos do festival, esta selecção recupera autores como Alice Diop, Verena Paravel, Lucien Castaing-Taylor, Hong Sang-soo, Lawrence Abu Hamdan, ou o colectivo Total Refusal, e ainda estreia muitos outros. O alinhamento mistura ficção, documentário, cinema experimental e animação, junta nomes consagrados com talentos de gerações mais jovens, apresenta filmes que se aproximam tematicamente e dialogam entre si. No total são 15 longas e 22 curtas-metragens com abordagens e estéticas diversas, mas semelhantes na forma como usam o cinema enquanto ferramenta de questionamento social e inerentemente política.

Começamos pelos destaques nos filmes em competição. Saint Omer, primeira obra narrativa de Alice Diop, que tem reunido prémios e distinções por festivais um pouco por todo o mundo, é um filme poderoso sobre o julgamento de Laurence Coly, uma mulher acusada de matar a sua filha de 15 meses, abandonando-a à maré crescente numa praia no norte de França. Rama, uma jovem escritora, assiste ao processo, mas à medida que o julgamento continua, as palavras dos testemunhos dos acusados e testemunhas abalarão as suas convicções e deixarão em causa o nosso próprio julgamento. Here, de Bas Devos, explora uma possível história de amor entre um trabalhador da construção romeno e uma jovem belga-chinesa, a preparar um doutoramento sobre musgo. O realizador belga – mais um regresso ao festival – continua a filmar o invisível e o não dito como ninguém, num filme belíssimo sobre a forma como duas pessoas muito diferentes conseguem encontrar e partilhar terrenos comuns. Dez anos depois de vencerem o Grande Prémio de Longa Metragem do IndieLisboa com Leviathan, a dupla Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel trabalha a qualidade onírica do corpo humano em De Humani Corporis Fabrica. Algures entre o documentário abstracto e o body-horror, o filme consiste em footage gravada em oito hospitais franceses – cirurgias, cortes, explorações e outros procedimentos desconcertantes. A fotografia da dupla, com os seus já tradicionais planos diagonais e zooms extremos, contribuem para que este seja um filme imersivo em todos os sentidos. Num registo mais relaxado, Tenéis que Venir a Verla acompanha as agruras melancólicas de dois casais amigos que se reencontram. Apesar de aparentemente estar tudo bem, ânsias existenciais vão permear as conversas e pequenas brincadeiras dos quatro. Um filme dividido em duas partes, primavera e inverno, com o potencial de parecer terno para algumas pessoas e irónico para outras. Ambas as leituras são verdadeiras. Ainda em espanhol mas agora na Argentina, Luminum, de Maximiliano Schonfeld, trabalha a relação entre Silvia e Andrea, duas ufologistas de renome, que por acaso também são mãe e filha. Juntas lideram uma equipa de investigação sobre OVNI’s e permanecem de guarda perseguindo as luzes sobre o rio Paraná. Este documentário explora a ciência e a ficção através de duas personagens ligadas pela emoção mais humana: a amizade.

Um cineasta prolífico, com uma média de várias longas-metragens ao ano, e com uma obra circular e metareferencial muito peculiar, Hong Sang-soo joga com as expectativas dos seus seguidores com um filme íntimo e poético, no qual cada imagem foi cuidadosamente trabalhada, como uma pintura impressionista. Ou o realizador coreano decidiu brincar com as pessoas que o acusam de fazer constantemente o mesmo filme… e achou boa ideia desfocar a sua câmara. Seja qual for o caso, In Water é um dos grandes títulos Fora de Competição da Silvestre para 2023. A câmara de Claire Simon observa uma clínica de ginecologia em Paris, recolhendo cenas de nascimentos, diagnósticos de cancro, consultas sobre endometriose e terapia hormonal para uma mulher trans. Notre Corps começa por ser observacional antes de se tornar cada vez mais pessoal, um filme sobre o que significa viver num corpo feminino e um exemplo maravilhoso do poder do cinema documental. Joanna Hogg também regressa ao festival com The Eternal Daughter, um dos filmes mais aclamados pela crítica do ano passado. Uma mulher de meia idade e a sua mãe são forçadas a confrontar segredos antigos quando regressam à antiga casa de família, num raro exercício de género para uma realizadora reconhecida pelos seus dramas minimalistas. Com Tilda Swinton em dose dupla. 

Nas curtas, é impossível não falar de Incident, de Bill Morrison, nome maior do cinema experimental norte-americano das últimas décadas. O filme reconstrói um tiroteio policial e as suas consequências imediatas, montado a partir da recolha de arquivos, body-cameras, filmagens de vigilância e uma variedade de origens. A History Of The World According To Getty Images, filme-protesto de Richard Misek, denuncia os métodos dos grandes grupos económicos digitais. Ainda online, mas com um foco diferente, Hardly Working, do colectivo “pseudo-marxista” Total Refusal, trabalha as NPCs, non-playable characters, ou personagens não jogáveis, numa exploração das suas vidas diárias enquanto extras digitais de videojogos contemporâneos, de onde não conseguem escapar a não ser quando o algoritmo tem um glitch. Parece familiar? 45th Parallel, de Lawrence Abu Hamdan, analisa as contradições das fronteiras e as leis que governam o espaço da Biblioteca e Ópera de Haskell, um edifício municipal construído em 1904 que atravessa a fronteira entre os EUA e o Canadá. Este local peculiar torna-se o palco de um monólogo de investigação sobre o tiroteio de 2010 de um mexicano desarmado de 15 anos por um agente da Patrulha de Fronteiras dos EUA e os assassinatos remotos via drone no Afeganistão, Iémen, e Paquistão. 

O IndieLisboa decorre entre os dias 27 de Abril e 7 de Maio, e irá levar o seu programa às salas do Cinema São Jorge, Culturgest, Cinemateca Portuguesa e Cinema Ideal.

Lista de filmes

Longas-metragens:

Being in a Place – A Portrait of Margaret Tait, Luke Fowler 
De humani corporis fabrica, Verena Paravel e Lucien Castaing-Taylor
Enys Men, Mark Jenkin
Garden Sandbox, Yukinori Kurokawa
Gigi la legge, Alessandro Comodin
Here, Bas Devos  
Luminum, Maximiliano Schonfeld
Saint Omer, Alice Diop 
Tenéis que venir a verla, Jonás Trueba
Trenque Lauquen, Laura Citarella

Curtas-metragens:

“Years ago, I was working on a movie…”, Marion Naccache
45th Parallel, Lawrence Abu Hamdan
A History Of The World According To Getty Images, Richard Misek
Alegrías riojanas, Velasco Broca
Aqueronte, Manuel Muñoz Rivas
Camino de Lava, Gretel Marin
Entrance Wounds, Calum Walter
Fawley, Chu-Li Shewring e Adam Gutch
HAPPY DOOM, Billy Roisz
Hardly Working, Total Refusal
House of the Wickedest Man in the World, Jan Ijäs
Il faut regarder le feu ou brûler dedans, Caroline Poggi e Jonathan Vinel
Incident, Bill Morrison
Issues with my other Half, Anna Vasof
It’s A Date, Nadia Parfan
Ode to Loneliness, Rawane Nassif
Outlets, Duncan Cowles
Prelude Op. 28 No. 2, Jenni Toikka
Repetitions, Morgan Quaintance
The Fruit Tree, Isabelle Tollenaere
Thread, Abigail Smith
Tiger Stabs Tiger, Jie Shen

Fora de competição:

The Eternal Daughter, Joanna Hogg
In Ukraine, Piotr Pawlus e Tomasz Wolski
in water, Hong Sangsoo
Music, de Angela Shanelec
Notre corps, Claire Simon
Slaughterhouses of Modernity, Heinz Emigholz

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