Na Boca do Inferno, a secção do festival dedicada ao desconcertante e ao bizarro, 2023 oferece-nos um alinhamento extenso e variado, com escolhas que variam desde comédias ácidas cringe até adaptações de clássicos sci-fi japoneses. No total são sete longas, de autores com história no festival, como Quentin Dupieux e Kristoffer Borgli, e estreantes nestas lides, como Beth de Araújo e Chloe Okuno.
Este ano, o grande destaque é Pearl, novo filme de Ti West, um dos grandes autores do cinema de género actual. Autêntico crowd-pleaser do terror, o filme usa a violência como engodo para fazer perguntas sérias – que consequências pode ter o isolamento, a repressão e o condicionamento familiar? O filme, uma prequela de X, de 2022, é simultaneamente uma homenagem à sumptuosidade do cinema clássico de Hollywood e uma obra artesanal, que Ti West realiza, escreve, monta e produz. Um futuro clássico do cinema de terror, com uma interpretação icónica da protagonista Mia Goth.
Watcher, a primeira longa-metragem de Chloe Okuno, parte do setup dos thrillers clássicos como ponto de partida para um filme inquietante, um twist feminista da Janela Indiscreta de Hitchcock. A viver num país onde não fala a língua, a sensação de isolamento e paranoia da protagonista é constantemente desvalorizada pelos que a rodeiam, num slowburner eficaz e impactante, que trabalha a solidão de forma magistral.
Soft and Quiet parte de um gimmick usual – o filme composto por apenas um plano-sequência – para criar uma das experiências cinematográficas mais tensas e perturbadoras do ano. Em plena América pós-Trump, o filme da estreante Beth de Araújo acompanha um grupo de mulheres ao longo de uma tarde em que são discutidos temas actuais: a raça, o género, o papel da mulher na sociedade e na família.
Híbrido found-footage satírico e mockumentary demente, Stephane foca-se num realizador desesperado por um hit e num personagem bigger-than-life, o Stephane do título, e na forma como um encontro aleatório pode descambar num escalar de bizarrices. Um filme divertido e excêntrico, que usa os arquétipos dos géneros que explora contra as expectativas do espectador.
Em Shin Ultraman, Shinji Higuchi regressa ao universo peculiar dos filmes de super-heróis japoneses, numa adaptação de Ultraman, série sci-fi de culto dos anos 60. Aqui, o autor de Neon Genesis Evangelion trabalha uma questão – como é que o governo do Japão, notório pelos seus processos burocráticos, abordaria uma eventual invasão alienígena? Resposta: com excesso de burocracia.
Quentin Dupieux regressa ao festival com um novo exercício delirante. Uma trupe de super-heróis vagamente inspirada nos Power Rangers tem uma única agenda – usar a nicotina no combate ao tabagismo. Contado em pequenos episódios, cada um mais bizarro que o anterior, Fumer Fait Tousser, tem tudo para ser recebido de braços abertos pelos espectadores mais aventureiros.
Kristoffer Borgli, realizador escandinavo que já esteve no IndieLisboa com as curtas Former Cult Member Hears Music for the First Time e Whateverest regressa com a longa Sick of Myself. Num embrulho aparentemente muito clean, o filme alimenta-se de humor negro para trabalhar a superficialidade e o imediatismo contemporâneo, numa farsa focada num casal a competir por atenção, a todo o custo. Por falar em atenção: alerta para o cameo de Anders Danielsen Lie, actor-fetiche de Joachim Trier.
Nas curtas, o corpo e os seus limites – na dor e no prazer – são os temas de Claudio’s Song e In The Flesh, exercícios humorísticos e absurdos. Honeymoon at Cold Hollow e A Folded Ocean abordam tensões de casais, no primeiro com uma estética grindhouse, o segundo mais melancólico e abstracto. Meantime faz da subtileza o seu motor narrativo enquanto Pipes, curtíssima animação BDSM, usa o sexo e o humor in your face de uma forma original. A fechar, The Diamond, autêntico tratado do absurdo. Uma delícia.
Lista de filmes
Longas-metragens:
Fumer Fait Tousser, Quentin Dupieux, 2022
Pearl, Ti West, 2022
Shin Ultraman, Shinji Higuchi, 2022
Sick of Myself, Kristoffer Borgli, 2022
Stéphane, Timothée Hochet, Lucas Pastor, 2022
Soft & Quiet, Beth de Araújo, 2022
Watcher, Chloe Okuno,2022
Curtas-metragens:
Claudio’s Song, Andreas Nilsson, 2022
The Diamond, Vedran Rupic, 2022
Honeymoon at Cold Hollow, Nat Rovit, 2022
In The Flesh, Daphne Gardner, 2022
A Folded Ocean, Benjamin Brewer, 2023
Meantime, Guillaume Scaillet, 2022
Pipes, Kilian Feusi, Jessica Meier, Sujanth Ravichandran, 2022